É apenas mais uma manhã de outono. Um vento frio sopra pela janela em direção à mesa de jantar.
Ali o garoto organiza os alimentos do café da manhã até que olha para o canto da mesa.

-Quê?! Mãe, olha só quem tá aqui na mesa! – diz em tom de surpresa e indignação pela ousadia.
-Que é menino? tô preparando o café!
-Olha essa osga aqui na mesa, já me viu e nada de ir embora tamanha 9 da manhã – fala o garoto como exímio conhecedor do comportamento das osgas.
-Tira ela daí vai, pra gente tomar o café. – disse a mãe já com o pensamento na fome.

O rapaz investiga a casa com os olhos buscando algo para espantar o pequeno réptil e encontra uma sombrinha pendurada na costa de uma das cadeiras da mesa.
Segurando a sombrinha como um cavaleiro segura a lança em cima do cavalo em uma disputa medieval, o garoto toca a osga ao lado da barriga.

Nem um movimento

Aiai, por que tu não vai embora, coisa? Geralmente cês saem correndo e nunca aparecem de dia!, indagou o rapaz começando a se preocupar.

Ainda pequeno via lagartixas na parede. No momento em que elas o percebiam, corriam até sumir de vista.
Esses olhinhos curiosos e mãozinhas que seguram na superfícies… tão fofinhas quanto catioríneos!, pensava ele.
Osgaldo, Osgaldino, Osgaudelha e outros mais eram inquilinos há anos e sempre que via novos parentes tratavam de batizá-los feliz da vida.

Mas nesse momento a felicidade dava lugar a preocupação.
Várias tentativas de afugentar o animal e ele recusava-se a tirar as pernas traseiras do lugar.
Com a ponta da sombrinha levantou o rabo e viu uma linha vermelha de sangue.
-Mãe, ele tá ferido! É por isso que ele não quer ir embora!

O garoto foi para o outro lado da mesa a fim de fica mais perto do bichinho e conseguir colocá-lo no chão. Foi nesse momento que viu à direita dos seus pés, camuflada pelo azulejo escuro, uma aranha observando todo o resgate de sua presa.

-Tem uma aranha aqui, acho que foi ela quem fez isso com o Osguinha. – disse o rapaz para sua mãe que a essa altura assistia aflita os acontecimentos. -Vou matar essa bicha!

Foi na varanda, pegou uma sandália e partiu pra cima da criminosa.

“Bye, bye, otário” – disse a aranha pra ele, ao menos foi o que pensou ao vê-la sumir tão rápido em meio a pilha de bugigangas em baixo da escada.
Ai caroço, agora não posso deixar a osga aqui dentro.

Com a sombrinha empurrou-a por trás e o rabo que já estava bambo, cedeu.
O animal e o rabo foram para dentro de uma caixa de plástico transparente.

-Aiai que o rabo saiu!!! pqp fo**u ele vai morrer, não morre, por favor! – falou o garoto olhando o bichinho nos olhos, aqueles olhinhos ingênuos e assustados.
Ele vai sobreviver, por favor, sobrevive, vai ficar bem…, surtava em seus pensamentos enquanto um sentimento frio subia pelo seu corpo como uma cobra serpenteia um tronco de árvore e com ela uma vontade de chorar… a mesma de 8 dias atrás.

-Calma meu amor você vai sobreviver, toma água vai – falava ele com a voz trêmula.
Sua fiel cachorra agora com vida apenas para virar o pescoço e cheirar seus pés uma última vez.

Ele sentou ao seu lado, levantou sua cabeça e disse nos seus olhos: “Fica comigo, por favor, fica”.
Os olhos do animal penetravam sua alma onde deixava a mensagem
“Chegou a hora, obrigado por ficar ao meu lado, também te amo.”

Anos atrás era ele quem agradecia.
Os dias iniciavam com um sorriso no rosto, energia lá em cima. Perto da hora de saída do colégio o humor já estava caindo. No ônibus a caminho de casa a tristeza era profunda.
Havia terminado com a namorada há alguns dias, algo totalmente superável não fosse a agonia que era voltar para uma casa onde reinava a tristeza, raiva e rancor de uma família despedaçada por um divórcio turbulento.

Aquele sentimento frio insistia em vir mas ele aguentava até chegar em sua cama. Com a cara no colchão e um travesseiro como silenciador, chorava e gritava esperando que aquele sentimento saísse pela boca.

Nesse dia não saiu.

Lavou o rosto e desceu para sala de jantar, sentou-se no chão e mais uma vez pôs-se a chorar.
Com os olhos fechados em um mundo de tristeza sentiu algo que lhe puxava para a luz. Ao abrir os olhos percebeu ao seu lado sua fiel amiga com a cabeça encostada em seu braço, ele a olhou em seus olhos penetrando sua alma e disse: “Obrigado por ficar ao meu lado, também te amo”

Agora ele recebendo essa mensagem enquanto chorava em negação, sentiu o pescocinho pesar na sua mão.

Está no céu dos animais.

Sentia tristeza, culpa e negação mas nada mudava o fato do que estava acontecendo.

E agora olhando aquele pequeno réptil tudo vinha a tona.
Cara, se controla, respira e vamos levá-la pro quintal, explicou ele para si mesmo.
E ao chegar em frente ao vaso de plantas, despejou o bichinho que se agarrou a um caule e lá ficou.
Você vai sobreviver né, vai sim

Mas ele não tinha tanta certeza, até que abriu o celular e leu algo que o acalmou: osgas soltam o rabo como forma de confundir sua presa e ter tempo de fugir enquanto seu adversário se entretem com o rabo balançando.
-Ah, então ela vai sobreviver sim! – disse ele para sua mãe agora com um sorriso no rosto.
Deveria estar tudo bem mas um pingo daquele sentimento continuava ali.

Já chegava a hora de dormir quando por impulso decidiu ver o sobrevivente.
Em frente ao vaso, agachou-se e olhou… viu nada naquele escuro. Ligou a câmera do celular e lá estava o bichinho com as patinhas no mesmo caule, mas agora o olhar estava caído e longe.

Marchando pelo caule até suas pernas, um exército de formigas retirava seu banquete.
Por mais estranho que possa ser e depois de tudo o que passou, o rapaz olhou a cena e ouviu os ensinamentos de Mufasa ao Simba em sua mente:

Mufasa: Tudo o que você vê faz parte de um delicado equilíbrio. Como rei, você tem que entender esse equilíbrio e respeitar todos os animais, desde a formiguinha até o maior dos antílopes.

Simba: Mas nós não comemos antílopes?

Mufasa: Sim, Simba, mas deixe-me explicar: quando você morre, seu corpo se torna grama e o antílope come ela. E, assim, estamos todos ligados no grande ciclo da vida….

O frio dissipou e ele conformou-se.

Um dia nos vemos, vão em paz.